A escrita da notícia

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As fontes de informação e os jornalistas  ocupam diferentes papéis sociais na produção do discurso noticioso sobre saúde. Erwing Goffman propõe um conjunto de noções que podem ajudar-nos a compreender estas diferenças: autorresponsável e animador. O conceito de autor compreende aquele que escolheu as palavras e os sentimentos a serem expressos. Já o responsável será alguém que assume a posição, as opiniões e as crenças verbalizadas nas expressões ditas. Não é mais um corpo que emite sons, mas alguém comprometido com um papel ou identidade social representada e referida pelas palavras emitidas e pelo cargo ou categoria assumida. O animador é apenas “a máquina de falar”, “um corpo envolvido numa atividade acústica”.

Pegando no exemplo da comunicação da pesquisa sobre saúde e medicina, os jornalistas são vistos como canais de extrema importância para os cientistas comunicarem a sua investigação ao público. Neste quadro, parece haver um acordo entre o modo como os cientistas se veem a si próprios e o modo como os jornalistas os veem a eles como ocupando o papel de responsáveis. O papel dos cientistas como responsáveis pode ser visto quando os jornalistas referem os cientistas como sendo a sua fonte de informação, usando para o efeito, por exemplo, o discurso relatado. Enquanto que os cientistas são os responsáveis, os jornalistas funcionariam como animadores porque só estão a relatar o que é fornecido pela fonte. No entanto, os jornalistas não são só animadores, mas também autores. Os jornalistas são autores na medida em que escolhem a informação que vão colocar no texto e escolhem o modo como a expressam e também a forma como articulam informação proveniente de várias fontes num todo coerente. Claro que na escrita de um texto noticioso, como mostra Allan Bell, não intervêm apenas uma pessoa, mas uma cadeia de elementos, sendo portanto colectiva e negociada  a natureza desta autoria.

As contradições entre o modo como os investigadores veem os papéis dos jornalistas (como animadores) e os papéis reais dos jornalistas (como autores) contribuem e explicam, em parte, porque é que os investigadores que partilham “a visão dominante do processo de popularização da ciência” consideram que podem dizer ao jornalistas o que fazer e criticam o que os jornalistas fazem. No entanto, uma vez que os jornalistas são vistos por estes investigadores como animadores, o que fazem consiste apenas em relatar o que lhes é dado pelos responsáveis (os cientistas). O discurso dos cientistas chega aos jornalistas através de comunicados de imprensa escritos por profissionais de relações públicas, por vezes com a ajuda dos próprios investigadores. Como são os profissionais de relações públicas que escrevem os comunicados de imprensa, também eles ocupam o lugar de autores. No entanto, os cientistas criticam apenas os relatos noticiosos sobre saúde e investigação médica, e não os comunicados de imprensa, embora uns e outros “distorçam” o discurso científico original, dado que estamos a falar de géneros de discursos diferentes. Em ambos ocorre um processo de recontextualização do discurso científico original, e portanto (re)construções do mesmo. Se a maior parte das vezes o que aparece nos relatos noticiosos tem origem em comunicados de imprensa, porque é que as acusações de falta de rigor, de sensacionalismo ou de imprecisão só são dirigidas aos jornalistas e não aos profissionais de relações públicas? Afinal de contas, na visão dos investigadores, os jornalistas são meros animadores e cientistas e relações públicas responsáveis e autores dos textos usados como fonte de informação pelos jornalistas.

As preocupações dos cientistas com a “distorção” estarão sempre presentes e os jornalistas irão sempre distorcer. Os média, como instituição singular, têm as suas práticas e nunca poderão adoptar as práticas discursivas científicas quando comunicam a informação médica e de saúde ao público. Se o fizessem, não seria possível a comunicação. Se os jornalistas usassem o discurso científico na cobertura noticiosa sobre saúde, o público teria dificuldade em compreender as relatos noticiosos. Se o público pudesse ler facilmente artigos científicos, então os jornalistas não seriam necessários. E os cientistas sabem disso. Tanto que recorrem cada vez mais aos profissionais de relações públicas. Como os cientistas são a fonte de informação para os jornalistas, fazem parte do processo de comunicação médica e de saúde. Mas, como a ciência e os média são duas instituições diferentes, a responsabilidade social de uns e outros é diferente. Não será esse o ponto da discórdia? E o que tem o público a dizer sobre isto e sobre a alegada falta de rigor — que parece unir jornalistas e fontes — na cobertura noticiosa da saúde?

Zara Pinto Coelho, Membro do Projeto “A Doença em Notícia”

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