Morremos para viver? A tradução adequada do espanhol “nos morimos por vivir” talvez seja “estamos mortos por viver”. “Nos morimos por vivir” é um anúncio de sensibilização da Coca-Cola Journey España para a marca Aquarius. Incide sobre a doação de órgãos em Espanha, “o primeiro país do mundo em doação de órgãos”. Aposta na vitalidade e na jovialidade coroadas por um gesto que renova a vida: a doação de órgãos, a passagem da chama. Este anúncio, na linha de outros congéneres, suscita uma questão inconveniente mas difícil de contornar: por que motivo a qualidade e a criatividade das campanhas de sensibilização governamentais e de organizações não governamentais (ONG) tendem a ficar aquém das campanhas de sensibilização lançadas por entidades privadas? Por que é que umas conseguem fazer dois em um (sensibilizar e cativar para a marca) quando outras nem um conseguem alcançar (sensibilizar)?
Marca: Aquarius. Título: Nos morimos por vivir. Agência: McCann. Espanha, Janeiro de 2017.
Este texto é uma monstruosidade. Pelo tema e pelo tamanho. Mas urgia escrevê-o: estava a dispersar e a perder informação. Segundo o meu colega Moisés de Lemos Martins, o meu estilo é fragmentário e os artigos são álbuns. Concordo! O homem tipográfico analítico (McLuhan, Marshall, The Gutenberg Galaxy, Toronto, University of Toronto Press, 1962), ainda predomina, por histerese, no mundo académico. É, de algum modo, o antepassado do homem digital omnívoro. Não obstante, é mais difícil encontrar as imagens certas do que as palavras certas. Embora dedicado a um assunto menor, o texto acabou tão extenso que, bem aconselhado, decidi publicá-lo por partes, algumas, ainda assim, demasiado volumosas. O título geral é O Transi e a decomposição do corpo. O texto será publicado em seis artigos:
As artes da morte
O corpo em decomposição
Viver com os mortos
A didáctica da morte
A vida a prazo
Os mortos vivos.
Os séculos da morte
“Não há nenhuma outra época além da Idade Média em declínio que tenha atribuído tanta ênfase e tanto pathos à ideia da morte. Ressoa sem descanso pela vida o apelo do memento mori” (Huizinga, Johan, Le Déclin du Moyen-Age, Paris, Payot, [1919] 1938, p. 124).
Os séculos XIV e XV foram severos. A prosperidade do Renascimento do século XII pertence ao passado e os novos tempos são de crise:
Económica: diminui o crescimento e grassa a fome (este diagnóstico não é consensual entre os historiadores);
Demográfica: entre 1347 e 1353, a peste negra dizima cerca de metade da população europeia, com maior incidência nos países do Mediterrâneo (Itália, França, Espanha e Portugal) onde faleceram entre 75 a 80% da população, contra cerca de 20% nos países do norte, tais como a Alemanha e a Inglaterra (http://www.saylor.org/site/wp-content/uploads/2011/06/Black-Death.pdf);
Política: multiplicam-se e agudizam-se as crises dinásticas e as guerras, incluindo a Guerra dos Cem Anos;
Cultural: a ciência, a cultura e a arte entorpecem ou entram em recessão;
Moral: cava-se uma crise de valores acompanhada por uma “depressão moral” (Huizinga, Johan, Le Déclin du Moyen-Age, Paris, Payot, [1919] 1938, p. 35). Este diagnóstico também não é consensual entre os historiadores.
As artes da morte
“O espírito do homem medieval, permanente inimigo do mundo, encontrava-se à vontade entre o pó e os vermes. Nos tratados religiosos sobre o menosprezo do mundo já estavam conjurados todos os horrores da decomposição. Mas a pintura dos detalhes deste espectáculo espera por mais tarde. Só por finais do séc. XIV, as artes plásticas se apropriam deste motivo. Era necessário um certo grau de força expressiva realista para o tratar apropriadamente; esta força foi alcançada por volta de 1400” (Huizinga, Outono, El otoño de la Idad Media, Madrid, Alianza Editorial, [1919] 1982, pp. 197-198).
No “outono da idade média” (Johan Huizinga) emergem novas formas de criação artística, centradas nas figuras da morte e do morto.
A lenda dos três mortos e dos três vivos
Três jovens cavaleiros da alta nobreza são interpelados por três mortos que funcionam como espelho do destino do homem: nós já fomos o que vós sois; vós sereis o que nós somos. No Dito dos Três Mortos e dos Três Vivos, da Igreja de Saint Germain, em La Ferté-Loupière, em França, o primeiro Morto garante que os três vivos serão em breve tão horrorosos como eles. O segundo queixa-se da maldade da morte e do inferno. O terceiro realça a precariedade da vida e a necessidade de estar pronto para a morte (ver figura 04). Os três mortos do Livro de Salmos de Bonne de Luxembourg (ver figura 05) apresentam a particularidade de evidenciar idades distintas: o primeiro tem o sudário quase completo, o segundo só tem restos do sudário e o terceiro nem sudário tem. O corpo do primeiro morto está pouco degradado e o último está quase reduzido ao esqueleto. Se a vida tem idades (As Idades da Vida), a morte não lhe fica atrás.
As danças da morte
Nas danças da morte, ou macabras, dezenas de mortos dão a mão a outros tantos vivos. Estas danças aparecem nas paredes dos cemitérios e das igrejas, mas também em manuscritos como, por exemplo, os livros de horas (ver os seguintes artigos: A morte à flor da pele; A passo de caranguejo – A canção da morte; O louco e a morte).
“A dança macabra é uma ronda sem fim, onde alternam um morto e um vivo. Os mortos comandam o jogo e são os únicos a dançar. Cada par é formado por uma múmia nua, apodrecida, assexuada e muito animada, e por um homem ou por uma mulher, vestido segundo a sua condição(…) A arte reside no contraste entre o ritmo dos mortos e a paralisia dos vivos. O objectivo moral é lembrar ao mesmo tempo a incerteza da hora da morte e a igualdade dos homens perante ela. Todas as idades e todos os estados desfilam numa ordem que é a da hierarquia social tal como se tinha consciência dela” (Ariès, Philippe, O Homem perante a morte, Lisboa, Publicações Europa-América, [1977], 2000, p. 140).
A difusão das danças macabras por toda a Europa é um facto digno de registo. Existem danças macabras para vários gostos e vários destinatários. Embora Philippe Ariès fale em “múmia nua, apodrecida, assexuada e muito animada”, o certo é que existem danças macabras masculinas e, poucos anos volvidos, femininas, com as “múmias” a evidenciar sinais de género: no segundo caso, o cabelo das “múmias” é mais visível e mais comprido (ver Figura 07).
O toque da morte
Muitas pessoas admitem ter sentido a proximidade da morte: um estremecimento, o cheiro a enxofre, um som estranho… Poucas poderão, porém, afirmar ter-lhe sentido o toque. O toque da morte é o fim, ou o princípio, de uma viagem. Consta entre as representações da morte mais populares e mais estetizadas. Na Idade Média como na actualidade.
A morte aborda o ser humano: segura-o, abraça-o, beija-o, dá-lhe a mão, puxa-o pelos cabelos, levanta-lhe as saias, acerta-lhe com um dardo, vindima-o com a foice…
A morte anda à solta, ela está no meio de nós, gravada no imaginário. Por exemplo, nos quadros de artistas recentes como James Ensor, Edvard Munch, Otto Dix ou George Grosz.
As Ars Moriendi
“Em tudo o que fizeres, lembra-te do teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40). Esta passagem bíblica assumiu um carácter de máxima nos séculos XIV e XV: a Igreja e, sobretudo, as ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos), exortavam os fiéis para a necessidade constante de reflexão e preparação para o momento da morte, através da pregação dos sermões em língua vernácula e na contemplação de imagens religiosas. Com efeito, a partir do século XIV, acreditava-se que o fiel iria rever sua vida inteira antes da separação do seu corpo e de sua alma e, que as atitudes realizadas neste momento final, seriam fundamentais para dar conclusão à sua vida. Neste período, portanto, lembrar-se da morte é, sobretudo, refletir e preparar-se para este momento” (Patrícia Marques de Souza, Ars Moriendi circa 1450: a preparação para o post-mortem”, XXVIII Simpósio Nacional de História, 27 a 31 de Julho de 2015.
As Ars Moriendi materializam-se, principalmente, em textos ilustrados que visam preparar as pessoas para a morte (pode descarregar o livro Ars Moriendi, de 1490-1491, de autor anónimo). Estes livros alcançaram uma ampla divulgação pela Europa, até mesmo antes da invenção da imprensa (ver O galo e a morte, Tendências do Imaginário). A sua popularidade reside no facto de nos séculos XIV e XV o momento da morte ser concebido como uma prova decisiva para a salvação ou a condenação do moribundo. A preocupação com a preparação para a morte permanece actual.
Próximo artigo: Transi 2: o corpo em decomposição.
“Tarde, cerca da meia-noite, guiado pela juventude
Que comanda os enamorados, ia ver a minha amante.
Completamente só, além do Loire, e passando por um desvio
Aproximando-me de uma grande cruz numa encruzilhada,
Oiço, parecia-me, uma caça cheia de latidos
De cães que me seguiam, passo a passo, o rastro;
Vi perto de mim, sobre um grande cavalo negro,
Um homem que só tinha os ossos, ao vê-lo,
Estende-me uma mão para me montar na garupa.”
(Ronsard, Pierre de (1524-1585), Oeuvres complètes de Pierre Ronsart, Paris, P. Janet,1857-1867, pp. 134-135. Tradução minha, AG).
O anúncio Horsepower, da Rail Safety, é um concentrado de símbolos e emoções. O galope é avassalador e imparável. Galopam os cavalos e galopa o anúncio. Galopam, ainda, o coração e a imaginação. O esquartejamento e barba sugerem as trevas medievais. As correntes metálicas e a carroçaria do comboio são frias e mortíferas. Os mitos associam os cavalos à morte, nomeadamente quando são negros como o cavalo que guia a manada. O final, em plena velocidade, sobressalta o espectador: um arrepio de quem sente passar a morte! Ameaçado entre potências, o ser humano descobre-se frágil como o viajante de Pierre Ronsart.
“Os cavalos da morte são, na maioria, negros, como Charos, Deus da morte dos Gregos modernos. Negros são também, na maioria das vezes, os corcéis da morte, cuja cavalgada infernal perseguiu durante muito tempo os viajantes perdidos, na França assim como em toda a cristandade (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Ed. Robert Laffont, 1969, p. 226).
Segundo Wolfgang Kayser, o grotesco radica no estranhamento. Numa situação familiar, sucede algo de insólito, que abala os nossos fundamentos e nos suspende no vazio. Mas nem sempre é o familiar que se desmorona perante o estranho. Às vezes, é o estranho que revela o familiar, como se o absurdo carecesse de um absurdo maior para se enxergar. Em suma, propõe-se um pequeno enxerto à teoria do grotesco de Wolfgang Kayser. O grotesco associa-se a um estranhamento do mundo familiar, consoante o conceito de unheimlich de Sigmund Freud, mas também pode estar associado a uma familiarização do estranho, a uma engrenagem do inesperado. O anúncio russo The Drowning constitui um bom exemplo deste grotesco familiar. No vídeo, carregue em CC e seleccione English.
Marca: Mainpeople. Título: The Drowning. Agência: Stereotatic. Direcção: Michael Lockshin. Rússia, Abril 2015.