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Mais Vida

Nos morimos por vivir.
Nos morimos por vivir.

Morremos para viver? A tradução adequada do espanhol “nos morimos por vivir” talvez seja “estamos mortos por viver”. “Nos morimos por vivir” é um anúncio de sensibilização da Coca-Cola Journey España para a marca Aquarius. Incide sobre a doação de órgãos em Espanha, “o primeiro país do mundo em doação de órgãos”. Aposta na vitalidade e na jovialidade coroadas por um gesto que renova a vida: a doação de órgãos, a passagem da chama. Este anúncio, na linha de outros congéneres, suscita uma questão inconveniente mas difícil de contornar: por que motivo a qualidade e a criatividade das campanhas de sensibilização governamentais e de organizações não governamentais (ONG) tendem a ficar aquém das campanhas de sensibilização lançadas por entidades privadas? Por que é que umas conseguem fazer dois em um (sensibilizar e cativar para a marca) quando outras nem um conseguem alcançar (sensibilizar)?

Marca: Aquarius. Título: Nos morimos por vivir. Agência: McCann. Espanha, Janeiro de 2017.

 

A aceleração da morte

Trail Cavalos

“Tarde, cerca da meia-noite, guiado pela juventude
Que comanda os enamorados, ia ver a minha amante.
Completamente só, além do Loire, e passando por um desvio
Aproximando-me de uma grande cruz numa encruzilhada,
Oiço, parecia-me, uma caça cheia de latidos
De cães que me seguiam, passo a passo, o rastro;
Vi perto de mim, sobre um grande cavalo negro,
Um homem que só tinha os ossos, ao vê-lo,
Estende-me uma mão para me montar na garupa.”

(Ronsard, Pierre de (1524-1585), Oeuvres complètes de Pierre Ronsart, Paris, P. Janet,1857-1867, pp. 134-135. Tradução minha, AG).

Anunciante: Rail Safety. Título: Horsepower. Agência: Marketforce Perth. Austrália, Agosto 2011.

O anúncio Horsepower, da Rail Safety, é um concentrado de símbolos e emoções. O galope é avassalador e imparável. Galopam os cavalos e galopa o anúncio. Galopam, ainda, o coração e a imaginação. O esquartejamento e barba sugerem as trevas medievais. As correntes metálicas e a carroçaria do comboio são frias e mortíferas. Os mitos associam os cavalos à morte, nomeadamente quando são negros como o cavalo que guia a manada. O final, em plena velocidade, sobressalta o espectador: um arrepio de quem sente passar a morte! Ameaçado entre potências, o ser humano descobre-se frágil como o viajante de Pierre Ronsart.

“Os cavalos da morte são, na maioria, negros, como Charos, Deus da morte dos Gregos modernos. Negros são também, na maioria das vezes, os corcéis da morte, cuja cavalgada infernal perseguiu durante muito tempo os viajantes perdidos, na França assim como em toda a cristandade (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Ed. Robert Laffont, 1969, p. 226).

 

Morte assistida

Mainpeople The Drowning

Segundo Wolfgang Kayser, o grotesco radica no estranhamento. Numa situação familiar, sucede algo de insólito, que abala os nossos fundamentos e nos suspende no vazio. Mas nem sempre é o familiar que se desmorona perante o estranho. Às vezes, é o estranho que revela o familiar, como se o absurdo carecesse de um absurdo maior para se enxergar. Em suma, propõe-se um pequeno enxerto à teoria do grotesco de Wolfgang Kayser. O grotesco associa-se a um estranhamento do mundo familiar, consoante o conceito de unheimlich de Sigmund Freud, mas também pode estar associado a uma familiarização do estranho, a uma engrenagem do inesperado. O anúncio russo The Drowning constitui um bom exemplo deste grotesco familiar. No vídeo, carregue em CC e seleccione English.

Marca: Mainpeople. Título: The Drowning. Agência: Stereotatic. Direcção: Michael Lockshin. Rússia, Abril 2015.

Anjos dissolventes

Truth (National) - Connect -Replacement Smokers
Truth (National) – Connect -Replacement Smokers.

“Todos morreram juntos, novos e velhos, fracos e fortes, doentes e sadios; não como pessoas, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, bons e maus, bonitos e feios – mas reduzidos ao mínimo denominador comum da simples vida biológica, mergulhados no mais negro e fundo abismo da igualdade primal, como gado, como matéria, como coisas sem corpo nem alma, nem mesmo uma fisionomia em que a morte pudesse imprimir seu selo “(Arendt, Hannah, Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 227).

Somos dados a reacções desproporcionadas. Um quase nada pode turbar-nos o horizonte. Livrai-nos dos arcanjos e dos anjos da guarda, que tão empenhados andam em nos salvar. Na publicidade, as figuras do arcanjo e do anjo da guarda estão no vento: fundações e institutos públicos zelam por nós, estes crónicos e imprudentes pré-cadáveres.

No Apocalipse do terceiro milénio, à Peste, à Guerra, à Fome e à Morte, acrescentam-se a soda, o álcool, o tabaco, o sexo e a obesidade. Multiplicam-se os estudos, os planos, as campanhas e as intervenções. Para nos salvar de nós próprios (expressão historicamente funesta ): diabéticos, fumadores, alcoólicos e outras categorias propensas à morte adiável. Uma morte mediaticamente anunciada. Os resultados permanecem, no entanto,  escassos e frouxos. Mas não é por falta de recursos ou de argumentos públicos. Segue uma pequena amostra de alguns procedimentos característicos:
– litanias exemplares;
– imagens chocantes;
– o desrespeito da privacidade e da intimidade;
– a discriminação, a estigmatização e a culpabilização;
– “galerias de monstros”;
– a ostentação da miséria;
– a pedagogia do tétrico;
– a arbitrariedade transfigurada em chamamento e missão;
– a banalização  da censura;
– a excepção por decreto;
– profecias fundamentadas (“uma morte lenta e dolorosa”);
– legitimação pela ciência e pela técnica;
– prenúncio da morte e cenários dantescos.
Em suma, a arte da lixívia na limpeza da vida, com os corpos dispostos em gráficos e tabelas. Estas tendências assépticas e disciplinares indiciam que as democracias não são imunes a delírios totalitários nem à suspensão cirúrgica da cidadania.

Anunciante: Center for Science in The Public Interest TV. Título: Change de Tune. Agência: Lumenati. USA, Junho 2015.

A fazer fé no anúncio Change the Tune, do CSPI TV (Center for Science in the Public Interest TV), no que respeita às bebidas com soda, chegou a hora de “mudar o disco”. Este anúncio, de 2015, assemelha-se ao anúncio Unsweetened Truth, da American Legacy Foundation / Truth, de 2011. Ambos os anúncios são bem concebidos e convocam testemunhos presenciais de vítimas, demarcando-se de anúncios de sensibilização que optam pela alegoria ou pela animação (por exemplo, as campanhas de prevenção da sida). A encenação das vítimas (desfile com coro) corre o risco de transformar pessoas reais em bonecos imaginados. Georg Simmel e György Lukacs chamam reificação a este fenómeno. Numa sociedade de espectáculo global, também se pode chamar, com alguma irreverência, muppetsation. Os “corpos sem alma”, mais do que noções de Hannah Arendt, Michel Foucault ou Giorgio Agamben, são realidades consubstanciadas em práticas massivas.

Anunciante: America Legacy Foundation/Truth. Título: Unsweetened Truth, Agência: Arnold, Boston. Direcção: Baker Smith. USA, Março 2011.

Só a morte nos reúne

“Só a morte nos reúne” podia ser refrão de uma dança macabra medieval. Mas não! É actual. Só a morte nos reúne quando a vida nos separa. Com ou sem compressão do espaço e do tempo. Com ou sem comunicação multimédia. Com ou sem próteses. Com ou sem liquidez. Com ou sem hiper realidade. Com ou sem tribos. O mundo da vida, o mundo de cada um, não se encolheu, aumentou. E nós perdemo-nos em tamanha imensidão! Neste tempo de laços, afectos, sentimentos e emoções, “só a morte nos reúne” é um aforismo do misto de desencontro e urgência que preside ao nosso modo de estar na vida.

Marca: Edeka. Título: HeimKommen. Agência: Jung von Matt (Hamburg). Direcção: Alex Feil. Alemanha, Novembro 2015.

Dar vida à morte

Pois é impreterível que este corpo que perece se revista de incorruptibilidade, e o que é mortal, se revista de imortalidade. No momento em que este corpo perecível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, for revestido de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: “Devorada, pois, foi a morte pela vitória!” “Onde está, ó Morte, a tua vitória? Onde está, ó Morte, o teu aguilhão?” (Coríntios 15).

O Ocidente teve sempre dificuldade em lidar com a morte. A crença na ressurreição e na fonte da juventude é um sintoma. O regresso e o adiamento. Os anúncios de Marcel Burgos, da Acciona e da PlayStation 3, convocam esta fé angustiada.

O anúncio Re alude ao renascimento e à ressurreição. Um Big Bang à escala humana. Menos Frankenstein, costurado com pedaços alheios, e mais Osíris, assassinado por Seth. Ísis, a esposa, recolhe o corpo despedaçado e devolve a vida a Osíris.

Marca: Acciona. Título: Re. Agência: McCann Milan. Direcção: Marcel Burgos. Itália, 2009.

O anúncio Victor lembra o Oskar, o menino que recusa crescer, do filme O Tambor (1979), uma adaptação do livro homónimo de Gunter Grass (1959). Lembra, também, as pinturas da fonte da juventude, como a de Lucas Cranach O Velho (ver http://tendimag.com/2013/10/10/a-fonte-da-juventude/). Forçando um pouco, no Retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde, o envelhecimento é suspenso ou, melhor, deslocado.

Marca: PlayStation 3. Título: Victor. Agência: Del Campo Nazca Saatchi & Saatchi (Buenos Aires). Direcção: Marcel Burgos. Argentina, 2011.