Arquivo da categoria: Uncategorized

“As (in)visibilidades da violência de género: Brasil e Portugal” em debate

cartaz
Realiza-se no dia 5 de abril, a partir das 16h00, no Laboratório 007 do ICS (UMinho), um debate sobre “As (in)visibilidades da violência de género: Brasil e Portugal”.
Participam na iniciativa os investigadores brasileiros da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais Bruno Souza Leal, Paulo Bernardo Vaz, Elton Antunes e Carlos Alberto de Carvalho, estando a moderação a cargo de Carla Cerqueira (CECS).
Serão, ainda, visionados dois documentários: “Partir do Zero” e “No Devagar Depressa dos Tempos”.
Este debate inscreve-se na presença dos investigadores brasileiros no CECS durante a semana de 3 a 7 de abril, para participarem em reuniões de trabalho com o objetivo do estabelecimento de um entendimento entre o CECS e a UFMG, no sentido de desenvolver uma nova eventual parceria, à semelhança do que aconteceu entre 2014 e 2015, em que ambas as partes protagonizaram o projeto FCT-CAPES intitulado “O fluxo e a morte: desafios teórico-metodológicos em torno do ‘acontecimento mediático’”, coordenado em Portugal por Moisés de Lemos Martins e, no Brasil, por Paulo Bernardo Vaz.

Transi 6: Os mortos vivos

Com este artigo termina a série Transi: Corpos em decomposição. Os artigos anteriores foram: Transi 1. As artes da morte; Transi 2: O corpo em decomposição; Transi 3: Viver com os mortosTransi 4: A didáctica da morte e Transi 5: A vida a prazo.

“A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. De entre as muitas criaturas na Terra que morrem, só para os homens morrer é um problema. Compartem com os restantes animais o nascimento, a juventude, a maturidade, a enfermidade, a velhice e a morte. Mas apenas eles de entre todos os seres vivos sabem que vão morrer” (Elias, Norbert, La soledad de los moribundos, México, Fondo de Cultura Económica, [1982] 1989, p. 10).

from-horae-ad-usum-pictaviensem-manuscript-1455-1460-bibliotheque-nationale-de-france
Fig 50. Transi ou Zombie? Horae ad usum pictaviensem. Manuscrito. 1455-1460. Biblioteca Nacional de França.

Mudemos de olhar para terminar em rabo de víbora.

Este texto é manifestamente parcial. A obsessão macabra resume uma faceta da Idade Média. O homem medieval também foi um apaixonado pela vida. Entregou-se aos prazeres do corpo, à dança, à ebriedade, à sexualidade, ao riso, à extravagância, à transgressão, à vitalidade, à festa, ao convívio, à confusão, ao sonho. Em diversas dimensões: na linguagem, na arte, na praça pública, no Carnaval, na missa do burro, no teatro. Não é o momento de desenvolver esta vertente. O livro de Mikhail Bakhtin A cultura cómica popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (São Paulo, Hucitec, 2008) pode colmatar esta falha.

Walker - The Walking Dead _ Season 5, Episode 15 - Photo Credit: Gene Page/AMC
Fig 51. Walker – The Walking Dead. Season 5. Episode 15. Photo Credit: Gene Page/AMC.

Os vampiros, os Frankenstein, as múmias, os passageiros crepusculares e, sobretudo, os zombies lembram os transi. O sucesso destas criaturas é inegável. Aparecem no cinema, nos videojogos, nos vídeos musicais, nas séries de televisão, na publicidade, nas fotografias, nos posters, nas t-shirts, nas tatuagens e, até, nos brinquedos. Ficção ou não, são imagens de outrora e de agora. São os nossos fantasmas.

rick-genest
Fig 52. Rick Genest.

O homem medieval e o homem moderno distinguem-se quanto à identificação ou à projecção nas imagens da morte? A diferença é mais de grau do que de natureza. Quando no séc. XV, uma mulher grávida observa uma mulher grávida figurada numa dança da morte, pode admitir: aquela é como eu; eu sou como aquela; ou eu sou aquela. Historiadores consideram que a terceira alternativa é credível. Sucederá o mesmo com um espectador actual perante uma investida de zombies num filme? Ontem como hoje, somos propensos a identificar-nos com as vítimas. Mas também com os carrascos, banais ou monstruosos. Como vítimas, pense-se na síndroma de Estocolmo, mas também como espectadores (Faivre, Bernard, Martyrs, bourreaux et spectateurs, Paris, Armand Colin, 2010), sendo a passagem de espectador a actor frequente. Atente-se na violência no desporto (Murphy, Patrick; Williams, John; Dunning, Eric. O futebol no banco dos réus. Oeiras, Celta, 1994). No que respeita à identificação com a vítima e com o carrasco a diferença parece não ser intransponível.

fonte-da-juventude-saluzzo-castello-della-manta-sala-baronale-1500
Fig 53. Fonte da Juventude. Fresco. 1500. Saluzzo, Castello della Manta, Sala Baronale.

Algumas personalidades medievais tornaram-se célebres ao mandar esculpir transi a partir do seu corpo em decomposição, real ou imaginado. Na actualidade, desenha-se uma tendência para tatuar transi na própria pele. O caso mais célebre é o de Rick Genest. Nem sequer faltam os necrófilos (Fig 52)! Os transi passeiam-se, hoje, de um modo inédito.

grosz-glad-to-be-back-1943
Fig 54.George Grosz. Glad to be back. 1943.

Transumanista ou não, matar a morte está na agenda. Já matamos a morte nos videojogos e vários mega projectos apostam nesse sentido. Não é uma aspiração nova. A ideia da fonte da juventude apontava para uma forma de inverter a velhice num ciclo vital interminável. Era uma solução bioquímica.  Mas neste século a técnica é mais milagrosa. De pouco serve a lição de George Grosz: feliz, a morte não pára de renascer (Fig 54). As pessoas morrem, mas as coisas também. Nunca os objectos técnicos morreram tanto e tão depressa. O nosso século não é da eternidade, mas da obsolescência. Vamos continuar a transitar, com os olhos postos na imortalidade.

Transi 5: A vida a prazo

Continuação dos artigos: Transi 1. As artes da morte; Transi 2: O corpo em decomposição; Transi 3: Viver com os mortos; e Transi 4: A didáctica da morte.

“A tragédia da morte consiste em transformar a vida em destino” (Malraux, André, L’Espoir, Paris, Gallimard, 1937, p. 225).

santa_maria_de_les_roques_beram
Fig 43. Dança da Morte. Igreja de Sta Maria. Beram, Croácia. 1474. (Pormenor).

Nas danças da morte, ressalvando o tolo (ver O Louco e a Morte), existem dois tipos de protagonistas: os ainda vivos, estarrecidos, e os mortos, eficientes, fogosos e foliões. Os ainda vivos estão dispostos segundo a sua condição terrena, desde o papa ou o imperador até ao desamparado e à criança. Todos identificáveis pelos seus símbolos mundanos. Por exemplo, a coroa e o ceptro do rei ou a mitra e o báculo do papa… Em contrapartida, os mortos não evidenciam nem hierarquia nem distinção. As tão propaladas universalidade e igualdade na morte coexistem com a desigualdade e com a discriminação terrenas. A ordem social não agoniza, reitera-se. Não existe qualquer colisão com as prerrogativas e as conveniências cortesãs ou eclesiásticas. Uma coisa é a desordem do além, outra a ordem do aquém. Entre ambas, há lugar para catarse.

pinzolo-san-vigilio-italia-pormenor-da-danca-macabra
Fig 44. Dança macabra. Pinzolo. San Vigilio. 1539. Parede da igreja virada para o cemitério. Pormenor.

Nos Ditos dos Três Mortos e dos Três Vivos, três mortos confrontam três nobres. A morte e a nobreza face a face. Pode-se argumentar que os ditos dos mortos valem para todas as pessoas, nobres ou não. Afigura-se-me, contudo, que quando numa hierarquia o topo significa o todo, a hierarquia reforça-se, não diminui.

Para significar que vamos morrer e ser devorados por vermes não é preciso um fresco numa igreja ou uma iluminura num manuscrito, ainda menos dezenas de frescos e iluminuras. Esta visão fatalista  reproduz-se, também, nas canções, nas cantigas e nos poemas apreciados por determinadas categorias da nobreza.

bishop-fleming-tomb-lincoln-cathedral-dead-1431
Fig 45. Túmulo do Bispo Fleming. Catedral de Lincoln. Falecido em 1431.

Nos transi, a relação da alta sociedade com a morte é incontornável. Os transi são obra da alta nobreza, do alto clero e de algumas altas dignidades. Seguindo a vontade e o gosto das elites, uma vez que os “artistas” cingiam-se às encomendas. Nos transi, nomeadamente, de dois andares, a possante e magnífica vida do vivo depara com a infame e degradante morte do morto.

monument-to-henri-ii-and-catherine-dei-medici-by-germain-pilon
Fig 46. Túmulo de Henri II e Catherine de Médicis, por Germain Pilon. Basílica de Saint Germain. 1575.

Os contrários aproximam-se, porventura demasiado, mas não se anulam nem ultrapassam. Retomando uma expressão cara a Gilbert Durand (Figures mythiques et visages de l’oeuvre: De la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Berg International, 1979) e a Michel Maffesoli,  (“L’Homme contradictoriel”, in La Galaxie de l’Imaginaire. Dérive autour  de l’oeuvre de Gilbert Durand, Paris, Ed. Berg International, 1980, pp. 37-47) a relação entre a vida e a morte é contradictorial. O que está em jogo é a impotência da potência.

Vous, qu’une destinée commune
Fait vivre dans des conditions si diverses,
Vous danserez tous cette danse
Un jour, les bons comme les méchants.
Vos corps seront mangés par les vers.
Hélas! Regardez-nous:
Morts, pourris, puants, squelettiques;
Comme nous sommes, tels vous serez”

(Fala dos Músicos na Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, segundo gravuras publicadas por Guyot Marchant em 1485)

A poesia medieval, sobretudo a cavaleiresca, reproduz este sentimento de fatalidade e de impotência a que é votada uma vida terrena caracterizada pela fortuna, pela paixão e pelo prazer. Nada é absoluto, tudo é relativo, nada perdura, tudo tem um prazo. Philippe Ariès e Johan Huizinga dedicam várias páginas a poemas medievais inconformados com este destino adverso. Recordo uma comunicação de Erich Köhler num colóquio dedicado, nos anos setenta, a Lucien Goldmann, no Palácio do Luxemburgo, em Paris. Atendo-se à sonoridade, demonstrou como a poesia cavaleiresca era melancólica, ver trágica (Köhler, Erich, L’aventure chevaleresque. Idéal et réalité dans le roman courtois, Paris, Gallimard, 1974).

“Dantes eu era bela mais que todas as mulheres
Mas por morte, tornei-me assim,
Minha carne era muito linda, fresca e macia,
Agora transformou-se toda em cinzas.
Meu corpo era muito atraente e muito bonito.
Eu costumava vestir-me com sedas
Agora sou forçada a estar toda nua.
Eu vestia-me de peles várias,
Vivia num grande palácio a meu bel-prazer,
Agora habito este pequeno caixão.
O meu quarto era adornado de finas tapeçarias,
Agora o meu túmulo está rodeado de teias de aranha”
(Versos de um fransi feminino de Avignon, em Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, Lisboa, Ulisseia,  [1919] 1996, p. 107).

tomb-of-sir-john-golafre-d-1442-at-fyfield-in-oxfordshire-2
Fig 47. Túmulo de Sir John Golafre. Falecido em 1442. Fyfield, Osfordshire.

A melancolia e o “sentimento trágico da vida” (Unanumo, Miguel de, Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos, 1912) ter-se-ão apoderado de algumas camadas da nobreza da Idade Média tardia. O excesso de vida coabita com a certeza da morte, num ímpeto de inversão anunciada. O transi é a petrificação de um poema trágico.

bibliotheque-nationale-de-france-latin-1156-a-f-113v-horae-ad-usum-parisiensem-heures-de-rene-danjou-roi-de-sicile-1434-1480
Fig 48. Horae ad usum parisiensem – Heures de René d’Anjou, Rei da Sicília. 1434-1480.

“O homem de finais da Idade Média tinha uma consciência muito aguda de que estava morto a prazo, de que o prazo era curto, de que a morte, sempre presente no interior de si mesmo, quebrava as suas ambições e envenenava os seus prazeres. E esse homem tinha uma paixão pela vida que custa entender hoje, talvez porque a nossa vida se tornou mais longa (…). Durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao XV, produziu-se uma aproximação entre três categorias de representações mentais: a da morte, a do conhecimento por parte de cada um da sua própria biografia e a do apego apaixonado às coisas e aos seres possuídos em vida. A morte converteu-se no lugar a partir do qual o homem tomou, melhor que nenhum outro, consciência de si mesmo.” (Ariès, Philippe, Historia de la muerte en Occidente, Barcelona, El Acantilado, [1975] 2000, pp. 55-56).

Mudemos novamente de ângulo, porque tão pouco de disposições vive o homem. Também existem os actos. Um transi é um acto colossal impregnado de imaginário!

Um transi, escultura de um corpo em decomposição, numa campa ou num túmulo de dois andares, é, antes de mais, um memento mori monumental. É uma mensagem contundente, mas também didáctica. Apoiando-se, principalmente, no estudo dos túmulos de cinco eclesiásticos, Kathleen Cohen (Metamorphosis of a dead symbol: The Transi Tombs in the Late Middle Age and Renaissance. University of California Press, 1973, p.84) sustenta que estes “túmulos ensinam”.

“An important part of the statement of the transi tombs of the five fifteenth-century ecclesiastics – Lagrange, d’Ailly, Chichele, Fleming and von Sierck – was the warning that men must die and become food for worms. But this, as we have seen was only one part of the total statement of the tombs. The didactic element of these early transi tombs was closely linked with another, and more important function, the expression of hope for the salvation of the deceased”.

Regressemos à catequese pela imagem a que nem as gárgulas nas alturas escapam. Todas as pessoas na Idade Média acreditavam em Deus e na vida para além da morte (Febvre, Lucien, Le Problème de l’Incroyance au XVI siècle, Paris, Albin Michel, 1947). Temiam o inferno, resignavam-se ao purgatório e desejavam o céu.

paignton-devon-church-of-st-john-north-aisle-late-15th-or-early-16th-century
Fig 49. Paignton Devon. Church of St John. Fim séc. XV – Início séc. XVI.

Fala-se hoje em morte social durante a vida, ou seja, a “morte” em vida daqueles que perdem o calor , a interacção e os laços humanos. Será razoável falar, por inversão, de uma vida social na morte, uma vida dos mortos? De uma participação na vida apesar da morte? Quando dois anos após a morte, o túmulo é aberto para esculpir o transi, o morto está ou não a ter vida social? Visto, visitado, comentado e, eventualmente, temido por milhares de crentes, o morto é apenas carcaça ou cinzas? Se o túmulo é encarado como um acto de contrição, uma penitência ou um penhor de indulgência, onde começa e acaba a morte? A generalidade dos transi pede que se reze por eles; a quem e por quem se reza? As últimas moradas dos transi têm as portas abertas. O camponês sepultado fora da igreja nem sequer aspira a ser pó! Nos antípodas, andamos intrigados com o cardeal Lagrange, o arcebispo Chichele e o bispo Fleming. Admito que a noção de uma vida social na morte é insólita como, aliás, quase todas as ideias frescas.

Transi 4: A didáctica da morte

(Continuação dos artigos Transi 1: As artes da Morte; Transi 2: O corpo em decomposição; e Transi 3: Viver com os mortos.

A didáctica da morte

Não é só de actos e de factos que vive o homem. Também desenvolve ideias e crenças. Perfilha um imaginário que atribui sentido à vida e ao mundo. A Igreja medieval elegeu a morte como charneira da fé e da relação com o mundo dos cristãos. Algumas mudanças, mormente ao nível da religiosidade privada, revelaram-se decisivas. Por exemplo, o entendimento de que a salvação ou a condenação da alma não esperam pelo juízo final, concentrando-se nos derradeiros instantes de vida do moribundo (Ariès, Philippe, Historia de la muerte en Occidente, Barcelona, El Acantilado, [1975] 2000, pp. 43-51). As Ars Moriendi testemunham esta antecipação da prova para o momento pontual da morte.

musee-de-loeuvre-notre-dame-strasbourg-1470-souabe-amants-trepasses
Fig 34. Souabe Amants Trepassés. 1470. Strasbourg. Musée de l’Oeuvre Notre Dame.

É possível contra-argumentar que esta não era a posição oficial da Igreja. O puritano Richard Baxter (1615-1691)  “traduziu pragmaticamente” o mestre Calvino, o suficiente, porém, para Max Weber considerar o livro Christian Directory (1678) como um “compêndio de teologia moral puritana” capaz de fazer a ponte entre o Calvinismo, a ética protestante e o espírito do capitalismo (Weber, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, Lisboa, Editorial Presença, 1996 [1904]). A interpretação e a tradução podem ir além, desviar-se ou ficar aquém do interpretado. Algo semelhante ocorreu com a antecipação da prova de salvação e as Ars Moriendi.

1280px-plafond_chapelle_saint_jean_par_jm_rosier
Fig 35. Pilares e tecto da Capela de São João. Por J.M. Rosier. Palácio dos Papas. Avignon.

Entre o mundo oficial e o mundo da vida cresce um purgatório de mundos oficiosos. O que se coaduna, paradoxalmente, com a “detenção do monopólio dos bens de salvação” por parte da Igreja (Weber, Max, Economia y Sociedad, México, Fondo de Cultura Económica, 1983 [1922]; Bourdieu, Pierre, “Genèse et structure du champs religieux”, Revue Française de Sociologie, XII, 1971, 295-334).

igreja-de-sta-maria-beram-croacia-com-danca-da-morte-datada-de-1474
Fig 36. Igreja de Sta Maria. Beram, Croácia. Dança da Morte datada de 1474.

Proclamamos o nosso século como o século da imagem. Pois, os séculos XII a XV  também foram séculos da imagem.  Consagraram-se, ceteris paribus, como um período ímpar de criação e propagação de imagens. Tanto no centro como na periferia da Igreja, na Capela Sistina como nas igrejas mais recônditas. É costume associar-se a catequese pela imagem ao barroco. No fim da Idade Média, as paredes e os tectos das igrejas transbordavam com pinturas e esculturas educativas (Figuras 35 e 36).

dieric-bouts-martyrdom-of-st-erasmus-triptych-1458
Fig 37. Dieric Bouts. Martírio de Santo Erasmus. Triptíco. 1458.

As iluminuras conquistaram as margens dos saltérios e dos livros de horas. A morte, com comoção e conotação variáveis, é tópico recorrente. As esculturas, as pinturas, as gárgulas, os livros, os sermões,  as execuções públicas, os mistérios e as moralidades não enganavam quanto ao propósito: evitar o vício e abraçar a virtude, para amparo da alma.

execution-dolivier-iv-de-clisson-epoux-de-jeanne-de-belleville-le-2-aout-1343-selon-une-miniature-attribuee-a-loyset-liedet
Fig 38. Execução de Olivier IV de Clisson no dia 2 de Agosto de 1343. Segundo miniatura atribuída a Loyset Liedet.

As hagiografias e as pregações incidem mais sobre a morte do que sobre a vida dos santos. A Santa Ágata, arrancaram os seios; a Santa Luzia, os olhos; a São Telmo, os intestinos (Figura 37); São Pedro Mártir sobreviveu vários dias com um cutelo cravado na cabeça (Figura 39); a São Bartolomeu, esfolaram-no vivo (A festa de São Bartolomeu de Cavez); a São Dinis de Paris, cortaram-lhe a cabeça, o que não o impediu de percorrer com a cabeça nas mãos uma  distância considerável… Nestas imagens macabras, desfilam moribundos, cadáveres e corpos mutilados.

ambrogio-bergognone-detail-from-saint-peter-martyr-and-kneeling-donor-c-1490
Fig 39. Ambrogio Bergognone. São Pedro Mártir, c. 1490.

A Igreja erigiu a morte como pedra angular da doutrina, da iconografia, da hagiografia, da retórica e dos rituais religiosos. A antecipação da prova de salvação  para o leito da morte teve consequências vastas e profundas, consubstanciadas, por exemplo, na popularidade dos memento mori e das ars moriendi. A viragem religiosa dos últimos séculos da Idade Média centrou a vida na morte.

“O espectáculo dos mortos, cujos ossos afloravam à superfície dos cemitérios como o crâneo de Hamlet, não impressionava mais os vivos do que a ideia da sua própria morte. Os mortos resultavam-lhes tão familiares quanto familiarizados eles estavam com a sua própria morte” (Ariès, Philippe, História de la muerte en occidente, op. cit., p. 42).

st-denis-horae-ad-usum-parisiensem-dites-heures-de-charles-viii-1475
Fig 40. São Dinis. Horae ad usum parisiensem, ditas Horas de Carlos VIII. 1475.

A degradação dos corpos não espera pela morte; começa no “vale de lágrimas” saturado com a peste e a lepra;  a violência e as guerras;  as camadas de cadáveres; e nas palavras e imagens que deformam os corpos e definham as almas. A degradação dos corpos começa em vida. “O horror não está reservado à decomposição post mortem: está intra vitam” (Ariès, Philippe, Historia de la morte en occidente, p. 53).

illustration-of-the-black-death-from-the-toggenburg-bible-1411
Fig 41. Ilustração da peste a partir da Bíblia de Toggenburg. 1411.
leproso-agitando-um-chocalho-barthelemy-langlais-livre-des-proprietes-de-choses
Fig 42. Leproso agitando um chocalho. Barthélémy L’Anglais. Livre des propriétés des choses. Séc. XV.

Estes traços da mundividência medieval – a focagem da vida na morte, o espectáculo dos mortos e a degradação corporal em vida – proporcionam um novo olhar sobre os transi que se apresentam, a esta luz, menos insólitos ou, se se preferir, menos aberrantes.

Transi 3: Viver com os mortos

Continuação dos artigos Transi 1: As artes da morte e Transi 2: A decomposição do corpo.

“A populaça larga as oficinas e os comércios e amontoa-se junto ao estrado para examinar o modo como o paciente desempenhará o grande acto de morrer em público no meio de tantos tormentos” (Louis-Sébastien Mercier, Tableau de Paris, 1781)

O fenómeno dos transi nos sécs. XIV a XVI não é de fácil compreensão. A distância histórica e social que nos separa é apreciável. Importa, contudo, aceitar o desafio, tentar, por mais tosco e parcial que seja o resultado. Como enquadrar estas esculturas tumulares no seu tempo? Seguem alguns apontamentos, meras conjecturas.

josse-liefrerinx-saint-sebastian-interceding-for-the-plague-stricken-1497-99
Fig 28. Josse Liewfrerinx. São Sebastião intercede contra a praga. 1497-99.
pieter-brueghel-o-triunfo-da-morte-c-1562
Fig 29. Pieter Brueghel. O triunfo da Morte, c. 1562.

No fim da Idade Média, a morte integrava a vida íntima das pessoas. Durante os picos epidémicos, os mortos aguardavam onde se proporcionava o respectivo enterro. A morte bate à porta e ocupa praças e ruas (Figura 28). Com tamanha sobre-mortalidade, a terra dos cemitérios ficava saturada,  não era suficiente para tanto cadáver. Os crânios e os fémures não cabiam nos ossários.

john-fitzalan-14th-earl-of-arundel-1435
Fig 30. Transi de John FitzAlan. Castelo de Arundel. 1435.

Para além das epidemias e das doenças, como a peste e a lepra, a violência e a guerra também ceifavam vidas. Parte apreciável dos transi identificados faleceu de ferimentos de guerra. Por exemplo, John FitzAlan foi atingido, em 1435, num pé e feito prisioneiro durante uma batalha contra os franceses. A perna foi amputada, acabando por morrer. O seu túmulo de dois andares no castelo de Arandel foi aberto em meados do séc. XIX (Figura 30). Ao esqueleto faltava uma perna.

transitory_tomb_-_1435-40
Fig 31. Projecto de transi de dois andares. 1435-40.

A implementação medieval dos cemitérios e das sepulturas individuais contribuiu para uma maior separação entre os vivos e os mortos. Não obstante, a distância entre vivos e mortos fica muito aquém da actual. Os cemitérios eram locais de trânsito, passeio e lazer (Figura 32).

le-cimetiere-et-leglise-des-saints-innocents-jakob-grimer-attribue-a-vers-1570-musee-carnavalet
Fig 32. Jakob Grimer (atribuído a). Cemitério e Igreja dos Santos Inocentes. 1570. Museu Carnavalet, Paris.

« O cemitério [dos Santos Inocentes, em Paris] foi sempre um lugar muito frequentado, apesar da insalubridade. Servia no século XV para passeio popular num dos locais mais frequentados de Paris. Os franceses do fim da Idade Média conheceram as epidemias, a fome, as guerras, a sua visão do mundo foi profundamente alterada, o que reverteu em novas representações da morte. Escritores, artistas, andarilhos, comerciantes mas também as prostitutas e os criminosos frequentavam o cemitério, era um lugar em moda para encontros galantes, um lugar de trocas.

la-mort-saint-innocent-statue-dalbatre-presente-au-cimetiere-des-innocents-de-1530-a-1786
Fig 33. La Mort Saint-Innocent. Estátua de alabastro presente no cimitério dos Santos Inocentes de 1530 a 1786. Autor desconhecido.

Contudo, o lugar não tinha nada de salubre, as fossas estavam cobertas apenas com algumas placas. As pilhas de ossadas e os cadáveres em decomposição no solo eram visíveis por todo o lado. Os cães vadios vinham alimentar-se ao cemitério. O cemitério estava aberto a todos, incluindo à noite, o que propiciava desacatos de que os vizinhos se queixavam. Por acréscimo, a população circunvizinha deitava no cemitério  lixo e outras imundices. Era um depósito público.

Sob os ossários, mal grado o cheiro e a humidade, acomodavam-se pequenos ofícios: confecções, escritores, vendedores de livros. Apesar da proibição de fazer comércio no cemitério, os vendedores encontravam clientela. O Bairro dos Halles era então uma autêntica placa giratória do comércio de Paris, com os acessos constantemente obstruídos pelos fornecedores. Durante vários séculos, cerca de 1 200 000 cadáveres foram amontoados neste cemitério, o mais importante de Paris” (http://sur-les-toits-de-paris.eklablog.net/le-cimetiere-des-innocents-a46964117, acedido 05.01.2017)

Estes usos dos cemitérios aconteciam sob o olhar mórbido dos mortos. No Cemitério dos Inocentes, nas paredes laterais, por baixo dos ossários, figurava a primeira dança macabra de que há registo. No centro do cemitério, erguia-se a estátua de um corpo descarnado (Figura 33). O convívio entre símbolos religiosos e actividades profanas era corrente.

Transi 2: A decomposição do corpo

(Continuação do artigo Transi 1: As artes da morte).

Os Transi

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
Fernando Pessoa, Se te queres matar… Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.

Este desvio pelas artes mortuárias da Idade Média constitui um preâmbulo a uma visita aos transi, a mais tardia das artes medievais da morte.  Transi significa, em francês arcaico, trespassado. Adquiriu, entretanto, o sentido de estremecido, tolhido e petrificado, palavras associadas à sensação de medo e pavor. Os transi referem-se, sobretudo, a esculturas tumulares de corpos em decomposição, alguns pasto de vermes, insectos e sapos. Ao contrário das danças macabras e das Ars Moriendi, a difusão dos transi circunscreve-se a uma zona específica da Europa. Embora existam casos  na Bélgica, na Itália e na Suíça, a maioria dos transi provém do Leste da França, da Alemanha Ocidental e da Inglaterra. Na Península Ibérica resumem-se a casos excepcionais.

transi-de-guillaume-de-harcigny-1394-musee-de-laon
Fig 13. Transi de Guillaume de Harcigny. 1394. Museu de Laon. Pormenor.
transi-de-guillaume-de-harcigny-1394-musee-de-laon-2-copia
Fig 14. Transi de Guillaume de Harcigny. 1394. Museu de Laon.

O transi mais antigo de que há conhecimento remonta a 1394. Trata-se da lápide funerária de Guillaume de Harcigny, médico do rei Carlos VI (Figuras 13 e 14). Consta que, no testamento de bens que legou à Igreja, pediu para que fosse cinzelada uma escultura do seu corpo no estado em que se encontrasse um ano após o seu falecimento. Comparados com as danças macabras ou as Ars Moriendi, os transi são mais raros. Estão, no entanto, inventariados mais de duzentos transi na Europa. Eram encomendados pelas elites: reis, rainhas, nobres, cardeais, médicos, por sinal, as únicas pessoas com poder e recursos para encomendar a escultura e reservar um espaço para o efeito no interior das igrejas.

st-andrews-church-devon-feniton-unidentified-carved-cadaver-pormenor
Fig 15. Cadáver não identificado. St Andrews church. Devon. Feniton. Séc. XV. Pormenor.
st-andrews-church-devon-feniton-unidentified-carved-cadaver-1
Fig 16. Cadáver não identificado. St Andrews church. Devon. Feniton. Séc. XV.

Estas esculturas tumulares expõem o corpo desnudado do falecido. São caracterizadas por um elevado realismo macabro. A degradação do corpo torna-o descarnado e ressequido. O sudário ou as mãos ocultam os genitais. Por vezes, com pudica delicadeza, conjugam-se as mãos e o sudário (Fig. 15).

transi-du-cardinal-jean-de-la-grange-mort-en-1402-musee-du-petit-palais-avignonxiveme-xveme-siecles-tu-seras-bientot-comme-moi-un-cadavre-hideux-pature-des-vers
Fig 17. Transi do Cardeal Jean de la Grange, falecido em 1402. Musée du Petit Palais. Avignon. “Tu serás em breve como eu um cadáver horrendo pasto dos vermes”.

Os transi exibem despojamento e humildade nos lugares nobres das igrejas. Uma humildade exposta ou uma exposição humilde? Mostram-se aos passantes mas também a Deus. Interpelam-nos. Funcionam como memento mori. Alertam-nos. No túmulo do Cardeal Jean de la Grange, lê-se: “Tu serás em breve como eu um cadáver horrendo pasto dos vermes” (Fig 17).

anonimo-collegiale-saint-gervais-saint-protais-de-gisors-1526-qui-que-tu-sois-prends-garde-pleure-je-suis-ce-que-tu-seras-un-tas-de-centres-implore-prie-pour-moi
Fig 18. Transi. Jazente desconhecido. Numa parede da Collegiale de Saint Gervais e Saint Protais, Gisors. 1526.

O transi da Collégiale de St Gervais et St Protais, em Gisors, solicita a nossa atenção e a nossa compaixão: “Sejas tu quem fores, acautela-te, chora. Eu sou o que tu serás, um punhado de cinzas. Implora, reza por mim” (Fig 17). Na escultura tumular de Guillaume Lefranchois, a mensagem sai da própria boca do defunto: “Tenho esperança na minha salvação na única misericórdia de Deus” (Fig 20).

transi-de-francis-de-la-serra-a-la-sarraz-en-suisse-datant-de-la-fin-du-xive-siecle
Fig 19. Transi. Francis de la Serra. Sarraz. Suíça. Fim do séc. XIV.

Mas existem transi mais radicais na representação da decomposição após a morte. O corpo evidencia putrefacção, percorrido ostensivamente por vermes e outros necrófilos. Partes do corpo estão desprovidas de carne e pele. Aproximam-se da “morte seca” (esqueleto).

transi-de-guillaume-lefranchois-apres-1446-musee-des-beaux-arts-darras-2
Fig 20. Transi de Guillaume Lefranchois. Após 1446. Musée de Beaux-Arts d’Arras.

A minúcia cirúrgica destes corpos em decomposição lembra a noção de realismo grotesco aplicada por Mikhail Bakhtin à cultura popular medieval e renascentista (alguns transi relevam do Renascimento e, até, do Maneirismo).

boussu-belgique-gisant-appele-lhomme-a-moulons-xvie-siecle
Fig 21. L’Homme à Moulons. Por Jacques Du Broeck. Bélgica. Séc. XVI.
transi-de-joanna-of-bourbon-a-k-a-jeanne-de-bourbon-vendome-contesse-de-boulogne-et-dauvergne-1465-1521
Fig 22. Transi de Joana de Bourbon. Condessa de Boulogne e d’Auvergne (1465-1521).

Quem decide e quando a construção do túmulo? A quem cabe a iniciativa? Segundo consta, ao próprio. O príncipe holandês René de Chalon (Figura 23) manifestou, no leito da morte, a vontade de ser esculpido como se encontrasse três anos após o falecimento . O médico Guillaume d’Harcigny (Figuras 13 e 14) legou por testamento os grandes bens à Igreja de Laon pedindo que fosse feita uma escultura do seu corpo uma ano após a morte. A rainha Catherine de Médicis encomendou a sua estátua funerária em 1565 (Figura 24); faleceu 24 anos depois, em 1589. O arcebispo de Canterbury, Henry Chichele (Figuras 26 e 27), concluiu o seu próprio túmulo por volta de 1426; falecido em 1443, teve o ensejo de contemplar a sua última morada durante 18 anos. Trata-se, no mínimo, de uma decisão amadurecida.

Fig 23. Transi de René de Chalon de Ligier Richier, ca. 1545.1
Fig 23. Transi de René de Chalon de Ligier Richier, ca. 1545.1
esboco-do-transi-de-catherine-de-medicis
Fig 24. Girolamo della Robbia. Esboço da escultura mortuária de Catherine de Médicis. 1565.

Existe um tipo de túmulos com transi mais complexo. Trata-se dos “túmulos de dois andares”, como os baptizou Erwing Panofsky (Sculpture Funeraire, Paris, Flammarion, [1964] 1995). No andar superior repousa uma escultura do jazente adormecido, sereno, com as prerrogativas da sua vida terrena: fama, poder e riqueza. Está voltado para o céu. Por baixo, no primeiro andar, aparece a figura do transi, despojada, desconfortável e disforme. Perto da terra  (Figuras 25 e 26).

tomb-of-sir-john-golafre-d-1442-at-fyfield-in-oxfordshire
Fig 25. Túmulo de Sir John Golafre. Em Fyfield, Osfordshire. Após 1442.

Nestas circunstâncias, torna-se tentador esboçar algumas associações e oposições ao jeito estruturalista: alto/baixo; céu/terra; luz/sombra; sossego/retracção; vestido/nu; beleza/fealdade; perfeição / degradação; ostentação/despojamento… Nestes túmulos, os contrários permanecem lado a lado, tocam-se. Mas a humildade característica do transi é, paradoxalmente, envolta no fausto da globalidade do túmulo.

double-decker-transi-tomb-of-henry-chichele-archbishop-of-canterbury-1424-26
Fig 26. Transi em túmulo de dois andares de Henry Chichele, arcebisto de Canterbury. 1424-26.
tomb-of-archbishop-henry-chichele-canterbury-cathedral-canterbury-1424-1426
Fig 27. Túmulo de Henry Chichele, Acebisto de Canterbury, Catedral de Canterbury. 1424-1426.

(Continua no artigo Transi 3: Viver com os mortos).

 

Em companhia da morte

Em-Companhia-da-Morte-fotograma

“Uma rapariga que tinha de ir regar um campo muito cedo, passou por diante da igreja e vendo que se estava à missa, deu parabéns à sua fortuna e entrou, indo ajoelhar entre as outras mulheres. Estas começaram a olhar umas para as outras e a rosnar “aqui cheira a fôlego vivo”! Uma das mulheres levantou-se, aproximou-se da rapariga e disse-lhe: “O que te valeu foi vires ajoelhar na campa de tua madrinha, que sou eu. Vai-te e não olhes para trás!” A rapariga saiu, mas não resistiu à curiosidade e olhou para trás. Viu muitas fogueiras a arder. Eram as almas das pessoas, porque se não tinham dito missas. (Guimarães) (…)
Na noite de Natal é costume rezar pelas almas dos antepassados, “para eles não virem comer as migalhas que ficaram na mesa”. No Alto Minho nessa mesma noite põe-se sempre um talher a mais para a pessoa de família que ultimamente faltou, e não se levanta a mesa que fica posta toda a noite” (Pedroso, Consiglieri, Tradições Populares Portuguesas, Braga, Edições Vercial, 2010-2012, p. 102-103).

A fronteira entre o mundo da vida e o mundo da morte constitui um dos temas mais complexos da relação com a morte. O que parece um abismo é, afinal, uma ponte, uma zona de contrabando macabro. A morte assombra os vivos e os mortos mantêm uma centelha de vida (fantasmas, almas penadas, mortos-vivos). Proliferam as crenças e os testemunhos sobre os prenúncios de morte, tais como os acompanhamentos ou as procissões de defuntos. Carmelo Lisón-Tolosana dedica uma parte da Antropología Cultural de Galicia (Madrid, Akal, 1971) a este fenómeno conhecido na Galiza por “la santa compaña”. Muitas das lendas estudadas por Lisón-Tolosana também existiam na paróquia da minha infância.

George Barros. Procissão dos Mortos. Brasil.

Se bem me lembro, um acompanhamento é uma procissão de almas de mortos, eventualmente de vivos, que ocorre normalmente de noite. Confina-se ao território da paróquia, que delimita demarcando uma espécie de comunidade de vivos e de mortos. A procissão é encabeçada por um vivo que leva uma cruz e o caldeiro de água benta. Para o comum dos mortais, a procissão não é visível, mas pode ser sensível: aragem, frio, cheiro a velas, som de passos… Existe o risco de um vivo ser incorporado na procissão. Uma forma de o evitar consiste em traçar um círculo no chão e deitar-se com o rosto virado para baixo até a procissão passar. Os vivos que encabeçam as procissões carecem ser substituídos. De outro modo, empalidecem, definham e morrem. Embora o comum dos mortais não consiga ver o acompanhamento, existem excepções, pessoas que, vendo a procissão, se inteiram das próximas mortes. Não é raro as pessoas “sentirem” a passagem do acompanhamento. Muitos o admitem. Há relatos aterradores: um morto da procissão deu uma vela a uma pessoa; ao acordar, não tinha uma vela mas um osso do fémur. Na minha paróquia “sabia-se” quem tinha o fado de ver os acompanhamentos e a sina de antever os mortos. Não eram, precise-se, figuras fictícias: tinham rosto e nome. São crenças, mas para quem acredita são verdades.

Vêm estas curiosidades a propósito do documentário galego Em Companhia da Morte, de 2011, que durante 29 minutos dá voz ao saber e à experiência de mulheres de Castro Laboreiro no que diz respeito a acompanhamentos e outros anúncios da morte.

Em Companhia da Morte. filmado por Vanessa Vila Verde, João Aveledo e Eduardo Maragoto. Filmes de Bonaval. Galiza, 2011. Duração: 29 minutos.

Além do documentário, acrescento dois episódios do filme Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky: e Ave Maria, com música de Franz Schubert. Ambos lembram outros mundos.

Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky.

Fantasia (1940) de Walt Disney: Ave Maria, com música de Franz Schubert.

 

Moisés Martins encerra Seminário “Os Sentidos da Morte”

2015-11-20 18.33.07

No dia 20 de novembro de 2015 Moisés de Lemos Martins esteve na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, para encerrar o Seminário “Os Sentidos da Morte”.

Este é o segundo ano consecutivo em que o professor e investigador da Universidade do Minho (UM) se desloca a Belo Horizonte a convite do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, que mantém com a UM uma parceria na realização do projecto de investigação “O Fluxo e a Morte”.

O segundo dia deste seminário, que marca o último ano de duração do projecto, teve duas mesas temáticas antes da de encerramento.

2015-11-20 15.19.26

A primeira mesa temática do seminário neste dia foi dedicada a “A Morte e as suas Vítimas” e teve a participação de Carlos Mendonça, Juliana Soares, Ângela Marques, e Carlos Brito e Melo, todos da UFMG, e Angie Biondi, da Universidade Tuiuti do Paraná.

2015-11-20 17.00.28

Maria Gislene Carvalho e Bruno Martins, ambos da UFMG, constituíram a última mesa temática do seminário, intitulada “Impressos da Morte”.

A mesa de encerramento foi composta por Paulo Bernardo Vaz e por Moisés Martins, coordenadores do projecto “O Fluxo e a Morte” pela UFMG e pela UM, respectivamente.

Seminário ‘Os Sentidos da Morte’

seminario_sentidos_da_morte
Nos dias 19 e 20 de novembro de 2015 realizou-se, na Faculdade de Filosofia e de Ciências Humanas da Universidade Federal de Belo Horizonte, o Seminário ‘Os Sentidos da Morte’.

Este seminário resulta de um projecto de investigação sobre a morte e os média  desenvolvido em parceria pela Universidade do Minho e pela Universidade Federal de Belo Horizonte.

No primeiro dia, o evento organizou-se em duas mesas temáticas.

seminario_sentidosdamorte19

A Mesa 1 – ‘Morte e Notícia’  foi de dedicada à morte de figuras públicas como acontecimento mediático e sua relação com a publicidade. A mesa teve comunicações de Paula Andrade (UFMG), Ana Melo e Sandra Marinho (CECS/UM), Rafael José Azevedo (UFMG), e Samuel Andrade (UFMG).

seminario_sentidosdamorte19_2

A Mesa 2 – ‘A Morte Incômoda’ disse respeito às representações e configurações de morte e de sofrimento em séries televisivas policiais (Felipe Borges – UFMG) e em atrações turísticas (Belmira Coutinho – UA/CECS/UM).

A morte aos olhos de todos

A última semana foi, no que toca aos media, uma semana preenchida por notícias que se relacionam com a temática central deste projeto: a morte. Se, por um lado, os jornais e as televisões se centraram na transladação do corpo de Eusébio da Silva Ferreira, na sexta-feira, dia 3 de julho de 2015, por outro lado, e apenas uns dias depois, surgiu a notícia do falecimento de Maria Barroso, a 7 de julho, e funeral, no dia seguinte.  Imagem2

A proximidade temporal com que estes dois acontecimentos se realizaram e o modo como os meios de comunicação social se centraram neles servem de mote para refletir sobre a evidência de que as emoções (especialmente em casos de morte) são exploradas pelos media.

Sem dúvida, “descrever e relatar emoções tornou-se parte da comunicação social, da esfera pública e privada” (Vilaça, 2013: 40). De facto, apesar de a morte ser um assunto antigo para os media, a forma como é tratada tem vindo a evoluir. “Os jornais e as televisões lidam com a morte, alcançando um certo estatuto de noticiabilidade e adquirindo critérios de tratamento informativo” (ibidem).

A cobertura destes dois acontecimentos corrobora Madalena Oliveira (2005) quando a investigadora afirma que “sentir a morte que acontece é algo com que os media nos familiarizaram”. Sem dúvida, os jornalistas foram e são os nossos olhos diante da morte. Contam-nos o “horror da morte”.

E nós assistimos… cada vez mais familiarizados com esta situação. A morte, estampada nos media, recorda-nos que um dia todos nós passaremos por algo idêntico, querendo ou não.