Os trípticos As Tentações de Santo Antão (c. 1500) e O Jardim das Delícias (c. 1503-1504), de Hieronymus Bosch, constam entre as pinturas mais marcantes da história da arte. Um delírio hipnótico, enigmático e inquietante. Entre os prazeres da vida e as penas da morte, prevalecem o desejo e o pecado. Os trípticos inspiraram várias animações, algumas particularmente sinistras, como, por exemplo, o vídeo musical Spokes for the Wheel of Torment, da banda de death metal Buckethead. Seguem imagens (carregar para aumentar) dos dois trípticos de Hieronymus Bosch e o vídeo musical dos Buckethead.
Buckethead. Spokes for the Wheel of Torment. Direcção Syd Garon & Eric Henry. 2010.
“Uma rapariga que tinha de ir regar um campo muito cedo, passou por diante da igreja e vendo que se estava à missa, deu parabéns à sua fortuna e entrou, indo ajoelhar entre as outras mulheres. Estas começaram a olhar umas para as outras e a rosnar “aqui cheira a fôlego vivo”! Uma das mulheres levantou-se, aproximou-se da rapariga e disse-lhe: “O que te valeu foi vires ajoelhar na campa de tua madrinha, que sou eu. Vai-te e não olhes para trás!” A rapariga saiu, mas não resistiu à curiosidade e olhou para trás. Viu muitas fogueiras a arder. Eram as almas das pessoas, porque se não tinham dito missas. (Guimarães) (…)
Na noite de Natal é costume rezar pelas almas dos antepassados, “para eles não virem comer as migalhas que ficaram na mesa”. No Alto Minho nessa mesma noite põe-se sempre um talher a mais para a pessoa de família que ultimamente faltou, e não se levanta a mesa que fica posta toda a noite” (Pedroso, Consiglieri, Tradições Populares Portuguesas, Braga, Edições Vercial, 2010-2012, p. 102-103).
A fronteira entre o mundo da vida e o mundo da morte constitui um dos temas mais complexos da relação com a morte. O que parece um abismo é, afinal, uma ponte, uma zona de contrabando macabro. A morte assombra os vivos e os mortos mantêm uma centelha de vida (fantasmas, almas penadas, mortos-vivos). Proliferam as crenças e os testemunhos sobre os prenúncios de morte, tais como os acompanhamentos ou as procissões de defuntos. Carmelo Lisón-Tolosana dedica uma parte da Antropología Cultural de Galicia (Madrid, Akal, 1971) a este fenómeno conhecido na Galiza por “la santa compaña”. Muitas das lendas estudadas por Lisón-Tolosana também existiam na paróquia da minha infância.
Se bem me lembro, um acompanhamento é uma procissão de almas de mortos, eventualmente de vivos, que ocorre normalmente de noite. Confina-se ao território da paróquia, que delimita demarcando uma espécie de comunidade de vivos e de mortos. A procissão é encabeçada por um vivo que leva uma cruz e o caldeiro de água benta. Para o comum dos mortais, a procissão não é visível, mas pode ser sensível: aragem, frio, cheiro a velas, som de passos… Existe o risco de um vivo ser incorporado na procissão. Uma forma de o evitar consiste em traçar um círculo no chão e deitar-se com o rosto virado para baixo até a procissão passar. Os vivos que encabeçam as procissões carecem ser substituídos. De outro modo, empalidecem, definham e morrem. Embora o comum dos mortais não consiga ver o acompanhamento, existem excepções, pessoas que, vendo a procissão, se inteiram das próximas mortes. Não é raro as pessoas “sentirem” a passagem do acompanhamento. Muitos o admitem. Há relatos aterradores: um morto da procissão deu uma vela a uma pessoa; ao acordar, não tinha uma vela mas um osso do fémur. Na minha paróquia “sabia-se” quem tinha o fado de ver os acompanhamentos e a sina de antever os mortos. Não eram, precise-se, figuras fictícias: tinham rosto e nome. São crenças, mas para quem acredita são verdades.
Vêm estas curiosidades a propósito do documentário galego Em Companhia da Morte, de 2011, que durante 29 minutos dá voz ao saber e à experiência de mulheres de Castro Laboreiro no que diz respeito a acompanhamentos e outros anúncios da morte.
Em Companhia da Morte. filmado por Vanessa Vila Verde, João Aveledo e Eduardo Maragoto. Filmes de Bonaval. Galiza, 2011. Duração: 29 minutos.
Além do documentário, acrescento dois episódios do filme Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky: e Ave Maria, com música de Franz Schubert. Ambos lembram outros mundos.
Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky.
Fantasia (1940) de Walt Disney: Ave Maria, com música de Franz Schubert.
“Tarde, cerca da meia-noite, guiado pela juventude
Que comanda os enamorados, ia ver a minha amante.
Completamente só, além do Loire, e passando por um desvio
Aproximando-me de uma grande cruz numa encruzilhada,
Oiço, parecia-me, uma caça cheia de latidos
De cães que me seguiam, passo a passo, o rastro;
Vi perto de mim, sobre um grande cavalo negro,
Um homem que só tinha os ossos, ao vê-lo,
Estende-me uma mão para me montar na garupa.”
(Ronsard, Pierre de (1524-1585), Oeuvres complètes de Pierre Ronsart, Paris, P. Janet,1857-1867, pp. 134-135. Tradução minha, AG).
O anúncio Horsepower, da Rail Safety, é um concentrado de símbolos e emoções. O galope é avassalador e imparável. Galopam os cavalos e galopa o anúncio. Galopam, ainda, o coração e a imaginação. O esquartejamento e barba sugerem as trevas medievais. As correntes metálicas e a carroçaria do comboio são frias e mortíferas. Os mitos associam os cavalos à morte, nomeadamente quando são negros como o cavalo que guia a manada. O final, em plena velocidade, sobressalta o espectador: um arrepio de quem sente passar a morte! Ameaçado entre potências, o ser humano descobre-se frágil como o viajante de Pierre Ronsart.
“Os cavalos da morte são, na maioria, negros, como Charos, Deus da morte dos Gregos modernos. Negros são também, na maioria das vezes, os corcéis da morte, cuja cavalgada infernal perseguiu durante muito tempo os viajantes perdidos, na França assim como em toda a cristandade (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Ed. Robert Laffont, 1969, p. 226).