“Todos morreram juntos, novos e velhos, fracos e fortes, doentes e sadios; não como pessoas, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, bons e maus, bonitos e feios – mas reduzidos ao mínimo denominador comum da simples vida biológica, mergulhados no mais negro e fundo abismo da igualdade primal, como gado, como matéria, como coisas sem corpo nem alma, nem mesmo uma fisionomia em que a morte pudesse imprimir seu selo “(Arendt, Hannah, Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 227).
Somos dados a reacções desproporcionadas. Um quase nada pode turbar-nos o horizonte. Livrai-nos dos arcanjos e dos anjos da guarda, que tão empenhados andam em nos salvar. Na publicidade, as figuras do arcanjo e do anjo da guarda estão no vento: fundações e institutos públicos zelam por nós, estes crónicos e imprudentes pré-cadáveres.
No Apocalipse do terceiro milénio, à Peste, à Guerra, à Fome e à Morte, acrescentam-se a soda, o álcool, o tabaco, o sexo e a obesidade. Multiplicam-se os estudos, os planos, as campanhas e as intervenções. Para nos salvar de nós próprios (expressão historicamente funesta ): diabéticos, fumadores, alcoólicos e outras categorias propensas à morte adiável. Uma morte mediaticamente anunciada. Os resultados permanecem, no entanto, escassos e frouxos. Mas não é por falta de recursos ou de argumentos públicos. Segue uma pequena amostra de alguns procedimentos característicos:
– litanias exemplares;
– imagens chocantes;
– o desrespeito da privacidade e da intimidade;
– a discriminação, a estigmatização e a culpabilização;
– “galerias de monstros”;
– a ostentação da miséria;
– a pedagogia do tétrico;
– a arbitrariedade transfigurada em chamamento e missão;
– a banalização da censura;
– a excepção por decreto;
– profecias fundamentadas (“uma morte lenta e dolorosa”);
– legitimação pela ciência e pela técnica;
– prenúncio da morte e cenários dantescos.
Em suma, a arte da lixívia na limpeza da vida, com os corpos dispostos em gráficos e tabelas. Estas tendências assépticas e disciplinares indiciam que as democracias não são imunes a delírios totalitários nem à suspensão cirúrgica da cidadania.
Anunciante: Center for Science in The Public Interest TV. Título: Change de Tune. Agência: Lumenati. USA, Junho 2015.
A fazer fé no anúncio Change the Tune, do CSPI TV (Center for Science in the Public Interest TV), no que respeita às bebidas com soda, chegou a hora de “mudar o disco”. Este anúncio, de 2015, assemelha-se ao anúncio Unsweetened Truth, da American Legacy Foundation / Truth, de 2011. Ambos os anúncios são bem concebidos e convocam testemunhos presenciais de vítimas, demarcando-se de anúncios de sensibilização que optam pela alegoria ou pela animação (por exemplo, as campanhas de prevenção da sida). A encenação das vítimas (desfile com coro) corre o risco de transformar pessoas reais em bonecos imaginados. Georg Simmel e György Lukacs chamam reificação a este fenómeno. Numa sociedade de espectáculo global, também se pode chamar, com alguma irreverência, muppetsation. Os “corpos sem alma”, mais do que noções de Hannah Arendt, Michel Foucault ou Giorgio Agamben, são realidades consubstanciadas em práticas massivas.
Anunciante: America Legacy Foundation/Truth. Título: Unsweetened Truth, Agência: Arnold, Boston. Direcção: Baker Smith. USA, Março 2011.