(Continuação do artigo Transi 1: As artes da morte).
Os Transi
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
Fernando Pessoa, Se te queres matar… Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.
Este desvio pelas artes mortuárias da Idade Média constitui um preâmbulo a uma visita aos transi, a mais tardia das artes medievais da morte. Transi significa, em francês arcaico, trespassado. Adquiriu, entretanto, o sentido de estremecido, tolhido e petrificado, palavras associadas à sensação de medo e pavor. Os transi referem-se, sobretudo, a esculturas tumulares de corpos em decomposição, alguns pasto de vermes, insectos e sapos. Ao contrário das danças macabras e das Ars Moriendi, a difusão dos transi circunscreve-se a uma zona específica da Europa. Embora existam casos na Bélgica, na Itália e na Suíça, a maioria dos transi provém do Leste da França, da Alemanha Ocidental e da Inglaterra. Na Península Ibérica resumem-se a casos excepcionais.
![transi-de-guillaume-de-harcigny-1394-musee-de-laon](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/transi-de-guillaume-de-harcigny-1394-musc3a9e-de-laon.jpg?w=680)
![transi-de-guillaume-de-harcigny-1394-musee-de-laon-2-copia](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/transi-de-guillaume-de-harcigny-1394-musc3a9e-de-laon-2-cc3b3pia.jpg?w=680)
O transi mais antigo de que há conhecimento remonta a 1394. Trata-se da lápide funerária de Guillaume de Harcigny, médico do rei Carlos VI (Figuras 13 e 14). Consta que, no testamento de bens que legou à Igreja, pediu para que fosse cinzelada uma escultura do seu corpo no estado em que se encontrasse um ano após o seu falecimento. Comparados com as danças macabras ou as Ars Moriendi, os transi são mais raros. Estão, no entanto, inventariados mais de duzentos transi na Europa. Eram encomendados pelas elites: reis, rainhas, nobres, cardeais, médicos, por sinal, as únicas pessoas com poder e recursos para encomendar a escultura e reservar um espaço para o efeito no interior das igrejas.
![st-andrews-church-devon-feniton-unidentified-carved-cadaver-pormenor](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/st-andrews-church-devon-feniton-unidentified-carved-cadaver-pormenor.jpg)
![st-andrews-church-devon-feniton-unidentified-carved-cadaver-1](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/st-andrews-church-devon-feniton-unidentified-carved-cadaver-1.jpg?w=680)
Estas esculturas tumulares expõem o corpo desnudado do falecido. São caracterizadas por um elevado realismo macabro. A degradação do corpo torna-o descarnado e ressequido. O sudário ou as mãos ocultam os genitais. Por vezes, com pudica delicadeza, conjugam-se as mãos e o sudário (Fig. 15).
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Os transi exibem despojamento e humildade nos lugares nobres das igrejas. Uma humildade exposta ou uma exposição humilde? Mostram-se aos passantes mas também a Deus. Interpelam-nos. Funcionam como memento mori. Alertam-nos. No túmulo do Cardeal Jean de la Grange, lê-se: “Tu serás em breve como eu um cadáver horrendo pasto dos vermes” (Fig 17).
![anonimo-collegiale-saint-gervais-saint-protais-de-gisors-1526-qui-que-tu-sois-prends-garde-pleure-je-suis-ce-que-tu-seras-un-tas-de-centres-implore-prie-pour-moi](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/anc3b3nimo-collc3a9giale-saint-gervais-saint-protais-de-gisors-1526-qui-que-tu-sois-prends-garde-pleure-je-suis-ce-que-tu-seras-un-tas-de-centres-implore-prie-pour-moi.jpg?w=680)
O transi da Collégiale de St Gervais et St Protais, em Gisors, solicita a nossa atenção e a nossa compaixão: “Sejas tu quem fores, acautela-te, chora. Eu sou o que tu serás, um punhado de cinzas. Implora, reza por mim” (Fig 17). Na escultura tumular de Guillaume Lefranchois, a mensagem sai da própria boca do defunto: “Tenho esperança na minha salvação na única misericórdia de Deus” (Fig 20).
![transi-de-francis-de-la-serra-a-la-sarraz-en-suisse-datant-de-la-fin-du-xive-siecle](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/transi-de-francis-de-la-serra-c3a0-la-sarraz-en-suisse-datant-de-la-fin-du-xive-sic3a8cle.jpg?w=680)
Mas existem transi mais radicais na representação da decomposição após a morte. O corpo evidencia putrefacção, percorrido ostensivamente por vermes e outros necrófilos. Partes do corpo estão desprovidas de carne e pele. Aproximam-se da “morte seca” (esqueleto).
![transi-de-guillaume-lefranchois-apres-1446-musee-des-beaux-arts-darras-2](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/transi-de-guillaume-lefranchois-aprc3a8s-1446-musc3a9e-des-beaux-arts-darras-2.jpg?w=680)
A minúcia cirúrgica destes corpos em decomposição lembra a noção de realismo grotesco aplicada por Mikhail Bakhtin à cultura popular medieval e renascentista (alguns transi relevam do Renascimento e, até, do Maneirismo).
![boussu-belgique-gisant-appele-lhomme-a-moulons-xvie-siecle](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/boussu-belgique-gisant-appelc3a9-lhomme-c3a0-moulons-xvie-sic3a8cle.jpg?w=680)
![transi-de-joanna-of-bourbon-a-k-a-jeanne-de-bourbon-vendome-contesse-de-boulogne-et-dauvergne-1465-1521](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/transi-de-joanna-of-bourbon-a-k-a-jeanne-de-bourbon-vendc3b4me-contesse-de-boulogne-et-d_auvergne-1465-1521.jpg)
Quem decide e quando a construção do túmulo? A quem cabe a iniciativa? Segundo consta, ao próprio. O príncipe holandês René de Chalon (Figura 23) manifestou, no leito da morte, a vontade de ser esculpido como se encontrasse três anos após o falecimento . O médico Guillaume d’Harcigny (Figuras 13 e 14) legou por testamento os grandes bens à Igreja de Laon pedindo que fosse feita uma escultura do seu corpo uma ano após a morte. A rainha Catherine de Médicis encomendou a sua estátua funerária em 1565 (Figura 24); faleceu 24 anos depois, em 1589. O arcebispo de Canterbury, Henry Chichele (Figuras 26 e 27), concluiu o seu próprio túmulo por volta de 1426; falecido em 1443, teve o ensejo de contemplar a sua última morada durante 18 anos. Trata-se, no mínimo, de uma decisão amadurecida.
![Fig 23. Transi de René de Chalon de Ligier Richier, ca. 1545.1](http://www.lasics.uminho.pt/fluxo_morte_media/wp-content/uploads/2017/01/Chalon-transi.jpg)
![esboco-do-transi-de-catherine-de-medicis](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/esboc3a7o-do-transi-de-catherine-de-mc3a9dicis.jpg?w=680)
Existe um tipo de túmulos com transi mais complexo. Trata-se dos “túmulos de dois andares”, como os baptizou Erwing Panofsky (Sculpture Funeraire, Paris, Flammarion, [1964] 1995). No andar superior repousa uma escultura do jazente adormecido, sereno, com as prerrogativas da sua vida terrena: fama, poder e riqueza. Está voltado para o céu. Por baixo, no primeiro andar, aparece a figura do transi, despojada, desconfortável e disforme. Perto da terra (Figuras 25 e 26).
![tomb-of-sir-john-golafre-d-1442-at-fyfield-in-oxfordshire](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/tomb-of-sir-john-golafre-d-1442-at-fyfield-in-oxfordshire.jpg?w=680)
Nestas circunstâncias, torna-se tentador esboçar algumas associações e oposições ao jeito estruturalista: alto/baixo; céu/terra; luz/sombra; sossego/retracção; vestido/nu; beleza/fealdade; perfeição / degradação; ostentação/despojamento… Nestes túmulos, os contrários permanecem lado a lado, tocam-se. Mas a humildade característica do transi é, paradoxalmente, envolta no fausto da globalidade do túmulo.
![double-decker-transi-tomb-of-henry-chichele-archbishop-of-canterbury-1424-26](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/double-decker-transi-tomb-of-henry-chichele-archbishop-of-canterbury-1424-26.png?w=680)
![tomb-of-archbishop-henry-chichele-canterbury-cathedral-canterbury-1424-1426](https://tendimag.files.wordpress.com/2017/01/tomb-of-archbishop-henry-chichele-canterbury-cathedral-canterbury-1424-1426.jpg?w=680)
(Continua no artigo Transi 3: Viver com os mortos).