A análise detalhada do processo de recontextualização do discurso das fontes usado na cobertura jornalística do cancro permite apontar para vários tipos de interação entre os atores envolvidos.
Face ao sistema de saúde, nos dois diários analisados, coexistem duas linhas de posicionamento: um posicionamento de conflito ou mesmo de pressão, de natureza mais conjuntural, e um posicionamento de divulgação, mais continuado ao longo do tempo. Quanto ao primeiro, onde os diários abrem espaço à denúncia e à crítica da atuação governamental, destacamos um momento mais agudo, motivado pela proposta governamental de reorganização da rede oncológica nacional (2010). Neste debate em concreto, os diários não se limitam a dar voz a atores políticos e institucionais. Intervêm no debate: modelam de forma crítica as vozes oficiais, dão prioridade à voz da Ordem dos Médicos e produzem de forma autónoma dados sobre o assunto. Este posicionamento coexiste com outra tendência mais continuada de divulgação de dados (sobretudo de natureza epidemiológica), produzidos pelas autoridades sanitárias, onde os diários não se implicam, pelo menos de uma forma aberta. Poderemos dizer, portanto, que a agenda dos jornais é influenciada pela agenda política, mas também procura agir sobre a mesma.
O estudo mostra ainda outro tipo de posicionamento, persistente ao longo do tempo, mas apenas da parte do JN. Trata-se de uma aliança ou cooperação com as autoridades sanitárias e com associações médicas especializadas da sociedade civil, em ações de alerta, deteção e prevenção. Nestes casos, o JN publica notícias que integram informações e conselhos úteis para os leitores, interpelando-os diretamente, num estilo semelhante ao discurso das campanhas de prevenção.
Para além destas interações, destacamos a existente entre jornais e investigadores que se faz sobretudo via revistas científicas biomédicas (e.g. New England Journal of Medicine, Science, Nature, Journal of the American Medical Association, The Lancet, Cancer Cell, Current Biology), e que também ocorre através do contacto direto com centros de investigação e universidades, quando são nacionais ou locais. Apesar das conhecidas críticas tecidas pela comunidade científica aos média em geral (Nelkins, 1991), o certo é que parece ser cada vez maior o apetite dos jornais para noticiarem a inovação neste campo. Para os jornais, as revistas profissionais constituem verdadeiras galinhas de ovos de ouro. E, para as revistas, algumas delas reais campos de culto ao nível internacional, num mundo científico cada vez competitivo, o acesso aos jornais é uma prioridade, usando para o efeito métodos mais ou menos sofisticados, sendo o mais comum o comunicado de imprensa (Revuelta, 2010: 57). Este interesse mútuo concretiza-se, na prática, por uma aliança mais ou menos explícita, com notícias onde se faz uso apenas de uma fonte, a imprensa se demite de um inquérito crítico e adere, de uma forma mais ou menos explícita, às maravilhas da ciência.
Nelkin, D. (1991) “Selling Science: Scientists in Search of a Press” in Periodismo cientifico. Um Simpósio Internacional, Barcelona, 30 de Mayo, 1990, Barcelona: Fundación Dr. Antonio Esteve, pp. 18-20.
Revuelta, G. (2010) “Fuentes de Información en Periodismo Científico: Congressos, Revistas y Press-releases” in Luisa Massarani (coord.) Jornalismo e Ciência: Uma Perspectiva Ibero-Americana, Rio de Janeiro: Museu da Vida / Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, pp. 53-62.
Zara Pinto Coelho, membro do projeto “A Doença em Notícia”