Uma análise de cada um dos anos do projeto “A Doença em Notícia” evidencia uma prevalência das doenças oncológicas. Neste tempo, os jornalistas optaram por noticiar, através de diferentes ângulos, o cancro. Este tópico desencadeou notícias sobre retratos de situação, investigação, políticas de saúde, tratamentos, actos clínicos…
Paralelamente a esta doença que é notícia de forma contínua, destacaram-se dois fenómenos que importa aqui sublinhar.
2009: Gripe A
Se reunirmos a análise dos primeiros quatro anos desta investigação, a doença que mais se destacou foi, sem dúvida, a gripe. No entanto, em 2009, a Gripe A acentuou essa noticiabilidade devido ao número substancial de textos noticiosos publicados sobre esse surto gripal. Percorrendo esses artigos jornalísticos, nota-se duas estratégias de comunicação distintas: enquanto a nível internacional se decretou uma pandemia de efeitos incontroláveis, a nível nacional houve a preocupação de passar a ideia de que tudo está sob controlo.
Desde o início, a Organização Mundial de Saúde a nível internacional e os governos dos diferentes Estados a nível nacional evidenciaram uma grande preocupação com a gestão desta comunicação de risco, optando para estratégias opostas: de alarme no caso da OMS (“OMS alerta par vírus da Gripe A”, Jornal de Noticias, 26 de Abril de 2009; “Mundo deve preparar-se para o pior cenário, avisa OMS”, Público, 29 de Abril de 2009); de apelo à tranquilidade no caso das autoridades portuguesas (“O primeiro caso português: confirmada gripe A com tranquilidade”; Jornal de Notícias, 5 de Maio de 2009; “Portugal está ‘perfeitamente preparado’ para enfrentar nova pandemia”, Público, 14 de Junho). Uns e outros, no entanto, perceberam, desde logo, que era fulcral centralizar em si os canais de diálogo com os jornalistas, impondo uma clara hegemonia das fontes oficiais.
A presença regular das mesmas fontes nos jornais adensou rapidamente uma visão dominante, atirando os jornalistas para o dispensável papel de “pé-de-microfone’ das fontes oficiais de informação. O tempo revelou que esta centralidade do processo informativo emprestada às fontes de informação não terá sido a melhor estratégia para os media. Nem as trágicas previsões da OMS se cumpriram, nem as reiteradas afirmações de aparente normalidade das autoridades políticas e de saúde portuguesas protegeram a população do medo que se alastrou por todo o país.
Paralelamente às fontes políticas e autoridades públicas de saúde, os médicos também adquiriram o direito à palavra/opinião jornalística ora porque foram designados pelo Ministério da Saúde para explicar aos jornalistas o que estava a alegadamente acontecer (algo criticado pelos media), ora porque ocupavam posições de direção em determinadas estruturas, ou seja, integravam o grupo das chamadas “fontes organizadas”. Estas fontes especializadas eram imprescindíveis ao texto jornalístico que procurava explicar a pandemia. Criavam fiabilidade, resultante do conhecimento que possuem, mesmo quando estavam ao serviço do discurso dominante das fontes oficiais. No entanto, não é aqui que os jornalistas mais se detêm para ouvir falar da Gripe A.
A supremacia de fontes oficiais e de fontes especializadas institucionais, principalmente a tendência para ouvir sempre as mesmas pessoas dentro destes grupos, neutralizou a visibilidade de outros interlocutores a quem teria sido importante conceder a palavra. Para ouvir mais explicações, para escutar testemunhos. Profissionais importantes como os enfermeiros ou médicos desligados de qualquer cargo e pacientes ou cidadãos comuns que passaram ou temiam passar pela experiência desta doença teriam sido boas fontes, se não tivessem sido marginalizados. A teoria da espiral do silêncio de Noelle-Neumann (1995) já havia mostrado este dado de particular interesse: o facto de os meios de comunicação social também operarem em espiral, ou seja, centrarem-se nas opiniões (que se julgam ser) dominantes, deixando nas margens (do silêncio) aqueles e/ou aquilo que não têm acesso ao discurso mediático.
A 21 de Junho de 2009, ainda com os media a noticiarem exaustivamente aquilo a que a OMS decretou ser uma pandemia, um dos jornais aqui em análise, o Público, publicava uma extensa reportagem com o seguinte título: “Gripe? Isso é uma invenção do Governo!”. Esta não foi uma frase proferida em Portugal. Pertence a uma cidadã mexicana da Riviera Maia que, no texto, se torna mais explícita: “É uma mentira do Governo (…) senão por que não teríamos aqui nem doentes, nem mortos?” As afirmações serão certamente excessivas, mas, passado este tempo, encerram em si sinais preocupantes, nomeadamente dirigidos à classe jornalística que aderiu acriticamente ao discurso das fontes oficiais construindo em conjunto uma verdadeira pandemia mediática. Porque ninguém ousou quebrar a hegemonia de um discurso dominante que os media fizeram alastrar sem investirem muito no princípio do contraditório.
2011: E. Coli
Um surto raro de E. coli surgiu, em Maio de 2011, na Alemanha, sem que se encontrasse uma causa clara. Durante várias semanas, fontes oficiais arriscaram dar explicações prováveis que o desenrolar dos acontecimentos veio a contrariar. Ao longo desse tempo, os media foram ampliando contradições, fazendo arrastar um clima de incerteza que teve como consequência mais visível a diminuição drástica no consumo de vegetais.
Ao longo do surto de E. coli, a imprensa portuguesa desenvolveu um processo noticioso baseada em probabilidades. Num dia, escreve-se que tudo “teve origem em pepinos de Espanha comercializados no mercado central de Hamburgo” (JN, 27 de Maio de 2011), no dia seguinte noticia-se já isto: “Parece improvável que pepinos espanhóis exportados sejam a origem, como foi noticiado, do foco infeccioso que atingiu centenas de pessoas, matando seis, no Norte da Alemanha”. E esta incerteza mantém-se até Julho, altura em que este tópico desaparece dos palcos mediáticos. Não seria este avanço/recuo o esperado das fontes oficiais que, principalmente na Alemanha, se precipitam em convicções que rapidamente se transformam em dúvidas. Por outro lado, os jornalistas, ao citarem acriticamente aquilo que fontes de informação com cargos públicos anunciam, vão adensando o medo das populações que rapidamente diminuem o consumo de certos vegetais. Na ambiguidade, o melhor é a precaução. Não se viaja para países onde o surto parece estar a desenvolver, não se compram produtos sob suspeita.
Sobre o comportamento das fontes oficiais, em matéria de comunicação de risco, ficou patente a ausência de uma verdadeira estratégia assente num diagnóstico seguro. A reação imediata e a multiplicação de explicações descredibilizaram o seu papel de protetores da saúde pública, confundiram as populações e afectaram as relações com os media. Neste contexto, exigir-se-ia, por parte das fontes oficiais, um diagnóstico cauteloso, a definição de uma estratégia de comunicação responsável e coerente, assim como a combinação das técnicas de comunicação de risco e crise face a uma emergência que apresentava contornos de problema emergente e de crise instalada.
Em relação às fontes de informação usadas pelos jornalistas, mais de metade é identificada, ou seja, são fontes em relação às quais conhecemos o nome, o cargo e proveniência. Este seria um traço positivo desta cobertura jornalística, se não houvesse um número significativo de fontes não identificadas, o que reflecte bem o mal-estar que certas entidades sentiam se assumissem a informação em nome próprio. Por isso, fazem-no em nome de instituições. De sublinhar que não existem sobre esta matéria fontes anónimas.
Seguindo aqueles que falam com/para os jornalistas, constata-se que não existe uma pluralidade de vozes. Isso acontece mais ao nível das fontes nacionais do que nas internacionais. Citadas através de outros media ou chegando por outros canais, as fontes estrangeiras caracterizam-se por uma certa diversidade: ora porque falam a partir de pontos geográficos díspares, ora porque são citadas por meios de comunicação variados. Por cá, há uma tendência para usar as mesmas fontes, que geralmente se enquadram no grupo das oficiais. É com essa confraria, selecionada entre uma elite, que se desenvolve um apertado processo de agenda-setting sobre aquilo que se discute em determinado momento, criando-se, consequentemente, uma espiral de silêncio na qual se precipitam especialistas e pontos de vista que importaria ouvir. Teria sido bom alargar o cerco daqueles que falam. Teria sido produtivo ouvir fontes especializadas que, a partir daquilo que fazem, explicassem esta deriva em torno das causas deste surto. Não foi essa a opção tomada. Valorizaram-se as fontes oficiais e estas optaram por dois discursos que foram crescendo em paralelo: ora procurando acalmar a população (“Em Portugal não há razões para alarme, insistem as autoridades”, JN, 31 de Maio de 2011); ora criticando as estratégias de comunicação da Alemanha (“Em Portugal, Francisco George criticou a forma de actuação da Alemanha, dizendo que houve ‘muitos erros de comunicação’ na resposta inicial das autoridades alemãs”, “sobretudo por falta de consistência e de rapidez”, JN, 17 de Junho de 2011).
Este é um excerto adaptado dos artigos:
- Lopes, F., Ruão, T., Marinho, S., Araújo, R. (2012). “A saúde em notícia entre 2008 e 2010: Retratos do que a imprensa portuguesa mostrou”.Comunicação e Sociedade. Número especial: Mediatização jornalística no campo da saúde. Ed. Húmus/Universidade do Minho.
- Lopes, F, Ruão, T, Marinho, S (2010). “Gripe A na Imprensa Portuguesa: uma doença em notícia através de uma organizada estratégia de comunicação”. Observatório (OBS*) Journal, Vol 4, 4.
- Lopes, F., Ruão, T., Marinho, S., Araújo, R. (2012). “E. Coli: uma doença em notícia em discursos de incerteza e contradição”. Observatório (OBS*) Journal, 1 (6), 159-181.
- Lopes, F., Ruão, T., Marinho, S., Araújo, R. (2012). “A Media pandemic: influenza A in Portuguese newspapers”. Journal of Management & Marketing in Healthcare, 1 (5), 19-27.
- Lopes, F.; Ruão, T.; Marinho, S.; Araújo, R. “E. Coli: a disease in the news through speeches of uncertainty and contradiction”. International Journal of Healthcare Management. No prelo.